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Fátima Lambert

Ana Telhado…parafraseando Fra Mauro… 


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No séc. XVI e na Corte de Veneza, Fra Mauro desenhou mapas, sendo um cartógrafo sem viagens efectivas, vividas pela sua própria pessoa. As suas viagens eram efabulações, externalizadas em escrita, no decurso do conhecimento directo e indirecto de narrativas da autoria de outrem…daqueles que, definitivamente as tivessem empreendido e cumprido. 
As viagens supõem toda aquela panóplia de decisões, intencionalidades e estratégias acerca das quais muito se tem escrito – quem as concretiza e quem sobre elas se debruça, talvez compulsivamente. No caso de “Cartografia”, ao contemplar as 7 (das 10) fotografias, sinto-me como Fra Mauro…a viver as existências da permanência nas viagens através da visibilidade que Ana Telhado lhes confere. Viajo através das imagens de outrem e fico.

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Confesso que, mediante estas fotografias, sinto (desculpe a pessoalidade da análise e das reflexões) uma espécie de complexo de Stendhal, deslocado (transfigurado) no tempo e no espaço…Ou seja, a vivência real de Florença transporta-se para prospectiva emocional e imaginária da Guiné; o séc. XIX salta para o XXI. Sobretudo, trata-se uma viagem que não cumpri…a África. Somente (e não seja pouco…) através das imagens decididas pela Ana Telhado, possibilita-se a deslocação para longe. Viaja-se através das imagens do outro.

“De vez em quando, tento colocar-me no lugar de outros. Olhar à distância provoca um encantamento paralisante, como se o espaço fosse, realmente, ilimitado. Quem sou eu para estar tão convencido de que todo esse vazio não é a manifestação de alguma substância invisível?”


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Todavia, como tantos o afirmaram antes, não se trata de viagem, antes de abordar a permanência. Ao que se associe o caso de ponderar a presença e plasmar o hieratismo: cativar. Cativar desde dentro e estender a duração como reflectiu Peter Handke pois: 
“E os locais da duração também nada têm de notável, muitas vezes nem estão assinalados em nenhum mapa ou não têm no mapa qualquer nome.”

Os protagonistas são pessoas que adquirem nas fotografias da Ana Telhada uma condição de intemporalidade, embora localizados num tempo sócio-histórico e cultural. Residem na circunstancialidade do eu (Ortega y Gasset) mas transpõem-no, sendo-lhes outorgada – talvez por outras circunstâncias recepcionais nossas e através da contemplação – essa condição de estarem para-além-tempo. Assim, se entenda a acepção de duração…também. Afinal, questionar a percepção, consistência e “sobreposicionalidade” espiritual do tempo … procedendo desde Sto. Agostinho…

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Apesar da justeza a preto e branco, evidencia-se uma espécie de atlas de emoções, uma esteticização cartográfica que é edificada em fundamentos humanos. As fotografias são imagens fotográficas que não relatam, não testemunham, não representam, presentificam – na genuína acepção husserliana. Aquelas pessoas estão em epoché (estado de suspensão). A sua presentificação reside nisso mesmo. Encontram-se reduzidas (redução - metodologia implícita na fenomenologia estabelecida por Edmund Husserl) à maior perfectibilidade e focagem, querem-se austeras e superiores.

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A estetização (excessiva, alguns dirão) que a fotografia, em estado de sublimidade, pode provocar tem história e antepassados. Designadamente, quando se trata de fixar rostos, pessoas, paisagens ou objectos (artefactos e obras) de culturas não-europeias. Tal ocorre muito cedo, quando do desenvolvimento dos dispositivos fotográficos em acessoria às investigações arqueológicas e, posteriormente, antropológicas, como se sabe. Impossível não se pensar no quase insuperável esteticismo de Leni Riefensthal, patente nas séries realizadas entre os Núbios do Sudão – salvaguardando, é claro, a intenção subjacente a tais concretizações. 
A sedução que a fotografia analógica, ao nível de procedimento suscita, exalta-se através da concretização acedida a conteúdos iconográficos extremos: em ansiedade cenográfica, colocação corporal ausentada de espontaneidade ou estímulo, hieratismo que convoca as posturas constitutivas de uma estética grega do período arcaico. 

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À semelhança das korai, as figuras esguias femininas encenadas por Ana Telhado estabelecem novos cânones: é uma beleza idealizada, com a diferença de que, em simultâneo, se trata de uma beleza natural. Beleza natural que cada uma das pessoas possui em si e não transmite para outrem. Daí, a consciência afirmativa da duração que os protagonistas assumem, tanto quanto essa duração se torne consciencializada mediante a nossa recepção estética. 
No caso das figuras hieráticas da Série “Cartografia”, verifica-se uma “rotação” de 90º, quando da posição vertical, estas se alongam sobre terra ou sobre a pedra. Numa analítica simbólica, é o duplo reencontro com a substância de valência cosmogónica, rodando entre o ar e a terra.

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A Beleza cria, efectivamente, no homem um estado intermédio, onde os dois pólos oposicionais — vida física e inteligência — deixam de confrontar-se em sentidos contrários, resolvendo-se em harmonia. A mesma ideia, idêntica predisposição se revela no pensamento almadiano, quando entende que, enquanto criadores, a acção dos poetas, ou melhor, dos criadores, dever-se-ia realizar em estado de ingenuidade.
Enquanto agentes que contemplam estas fotografias, situamo-nos, transitoriamente num estádio estético que celebra a dimensão antropológica quanto a ontológica. Assim, estas figuras/presenças, cativadas na mais suprema esteticização, proporcionam uma incontornável lição de ética, implementam uma extrapoloção axiológica superior e celebram uma dimensão de dignidade pessoal, absolutamente invulgar. 

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Schiller atribuiu ao poeta a missão de educador da humanidade, a mais alta dignidade para a Arte. O poeta moderno só cumpriria essa missão, se ultrapassasse a perversão do estado civilizado e acedesse ao estado de ingenuidade. Assim, seria reintegrada no seio da humanidade, a totalidade primitiva — a inocência, a candura —, de que se afastara. Neste contexto, parece-me oportuno recordar quanto, o espírito poético imortal na humanidade só desapareceria – seguindo Schiller, totalmente, se a própria humanidade se perdesse a si mesma, ideia concordante, aliás se se quiser uma aproximação do séc. XX português, à argumentação de Almada Negreiros relativa, à condição intrínseca da humanidade, proporcionada pelo mito da queda — mítico-poética —, quanto à sua redenção em cada caso individual, pela reinvenção da ingenuidade. Ingenuidade que se chama autenticidade, verdade e, permito-mo dizê-lo, solenidade.

 

Maria de Fátima Lambert
Jan.2010
James Cowan, O Sonho do Cartógrafo – meditações de Fra Mauro na Corte de Veneza do século XVI, Lisboa, Rocco, 2000, p.32
Peter Handke, Poema à duração, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p.53
“Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir?” in “14. O que é o Tempo?”, Confissões, São Paulo, Editora Nova Cultural, 1999.
De acordo com a leitura que se faz de Schiller nas Cartas sobre a Educação Estética da Humanidade, "A beleza deve unir os dois estados opostos, suspendendo assim o antagonismo entre ambos. A essência da beleza é a liberdade, entendida como sentido harmonioso das leis, e suprema necessidade interior. Por meio da beleza, o homem é conduzido à forma e ao pensamento; é reconduzido à matéria e recupera o mundo sensível. A beleza liga os dois estados opostos que nunca se podem unir.” Mª de Fátima Lambert, "Aproximações a uma definição da educação estética e da “formação de gosto”, Revista Portuguesa de Filosofia  — Filosofia e Educação II, Janeiro-Junho - Tomo XLIX, 1993, Fascs. 1-2.
Verifica-se, portanto a afinidade com a posição de Schiller, na medida em que a nostalgia da humanidade perdida, nunca seria recuperada como outrora fora, nem o poeta voltaria a ser exactamente o mesmo tipo de poeta naïf, embora se pretendesse novamente o pintor do mundo ideal, assumindo o seu instinto forte e indestrutível — o instinto moral que o faz sempre retornar à natureza. Segundo Anatol Rosenfeld no Prefácio à versão brasileira de Cartas sobre educação estética, "Há uma circularidade ou espiralidade da coreografia conceitual que transforma retrocesso em progresso. O retôrno à natureza, como vimos, já não se refere à mesma natureza original, visto que no caminho foram percorridas todas as fâses da consciência. Já não se trata daquela natureza com que o homem físico começa e sim daquela com que o homem moral termina." Cf. p.23

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