Pedro Faro
OLHAR O SUL: ÁFRICA, BRASIL E OUTRAS EXTENSÕES DA DIÁSPORA PORTUGUESA. Ana Telhado propõe-nos uma visão subjectiva, cruzada por múltiplas circunstâncias, procurando superar os constrangimentos impostos pelo processo civilizacional .
Sue Williamson, por ocasião Looking Both Ways: Art of the Contemporary African Art Diaspora, em 2004, sublinha que “África pode ser pós-colonial mas o cordão umbilical da língua é tão forte como sempre foi” (Should I stay or Should I go: The ceaseless dilemma of the artists of island Africa). Simon Njami, em Mozart and me, alerta-nos para os perigos de um olhar estereotipado, historicamente moldado por preconceitos que provêm dos tempos do Iluminismo, e que definem aquilo que sabemos, aquilo que vemos, sublinhando que “o movimento oscilante da arte não deve ser lido relativo a um território mas a um a humanidade”. Allan de Souza denuncia a diferença e sua assimilação mercantil, o corpo preto como fenómeno de moda, veiculado pelos mecanismos de entretenimento. Diáspora, identidade, pós-colonialismo, corpo, comunidade versus individualidade, centro e periferia, fronteira, mitologia, território, ver, sentir, antropologia… Conceitos que se multiplicam cada vez mais que se falam das relações Norte e sul, também presentes nas considerações solicitadas pelas obras de Ana Telhado. Artista que, paradoxalmente, progride num sentido inverso daquele perseguido por alguns artistas africanos: do centro, Lisboa, para a periferia, países do Sul, de expressão portuguesa, como cabo Verde, Brasil, Guiné…
REDUCIONISMO
As sociedades capitalistas, a fraude urbana, as situações políticas instauradas e promovidas por um paradigma pós-colonial, tão, ou mais, atroz como o inicial, os refugiados, a polarização mundial, entre um norte desenvolvido e um sul barbarizado pela especulação das matérias-primas, constituem o fundo mnemónico colectivo da actualidade, imagens estereotipadas do mundo, dos vários mundos. Criancinhas esfomeadas, corpos mutilados, mulheres violadas, campos de refugiados, escravos, menores militares, abundam nos jornais, televisões, feiras de arte, bienais, catálogos… Subverter e questionar este reducionismo imagético é um dos objectivos de Ana Telhado que através de vivências extraordinárias, procura ver o que não se vê, criando poemas visuais que ultrapassam ou vão além das tais ideias-feitas, explorando e recuperando mitografias e mitologias, realçando o feminino enquanto conceito abrangente, religando-o à fertilidade, à maternidade, ao amor. Uma arqueologia subjectiva baseada na linguagem do corpo, no seu potencial expressivo, comunicante, indexal, testemunho primordial da vida. Uma viagem à cultura quase pré-colonial, ao universo de relações, sentimentos, formas de vida, próprias daquelas circunstâncias geográficas, climatéricas.
Olhar para fotografias ou imagens processadas pela artista ajuda-nos a repensar critérios de civilidade, a questionar o relativo peso das imagens, e, sobretudo, a considerar um Hemisfério Sul, ainda existente, mais ou menos livre de amarras de um pós-colonialismoo imerso em considerações globalizantes, ocidentalizantes, culpabilizante, apático e pouco actuante. “A reflexão, o debate, a argumentação racional, o princípio moral que se baseia numa noção secular segundo a qual os seres humanos devem criar a sua própria história, tudo isto foi substituído por ideias abstractas que celebram a excepcionalidade americana ou ocidental, denigrem a relevância do contexto, e olham para as outras culturas com um desprezo escarnecedor”, escreve Edward Said, em Orientalismo, que, noutros textos, defende que uma ruptura dos guetos disciplinares que têm confinado os intelectuais a perceber o outro.
SAIR DE SI
Ana Telhado sai do seu contexto habitual, Lisboa, cidade, urbana, cosmopolita, indistinta na massificação de comportamentos. Viaja, actuando e submetendo-se a novos contextos, novas formas de estar não-urbanas, próprias de comunidades quase rurais, por vezes tribais, onde a relação entre Homem e natureza não passa pelo alcatrão mas por um contacto directo entre os pés e o solo, a terra, a pele e a água, em que o corpo é um testemunho da vida, das suas vicissitudes. A fotografia é, de alguma forma, um “certificado de presença”, como nos diz Barthes, na Câmara Clara, tal como o corpo, e esse valor torna-se, por vezes, mais importante do que a ideia ou trabalho de representação.
A noção de performance antecede e existe implicitamente em cada imagem de Ana Telhado. Cada série implica um tempo de interacção, de relação entre fotógrafa e fotografado. Um trabalho de composição que não se limita a o instante, àquilo que fica que sai, à definição de enquadramento. Há um trabalho preparatório que nos lembra outros procedimentos, como os de Sharon Lochart, por exemplo, e as suas deslocações operativas, ressaltando a importância de outros contributos disciplinares neste processo, igualmente presentes ou sugeridos na sua recepção. Como sugeres Roland Barthes, escrever sobre fotografia implica “uma espécie de desconforto que sempre havia sentido: o de ser um sujeito que oscila entre duas linguagens, uma expressiva, a outra crítica; e, no seio desta última, entre vários discursos, os da sociologia, da semiologia e da psicanálise” (A Câmara Clara).
A experiência visual proposta por Ana Telhado, por todas as implicações culturais ou civilizacionais presentes, reafirma a ideia da obra como “facto artístico” (José-Augusto França) complexo, cruzado por diferentes variantes, que permitem colocar várias questões sobre a imagem, sobre a fotografia, sobre a cultura, sobre a memória colectiva.
CONTACTAR
O contacto improvisado é desenvolvido por Ana Telhado, inspirada pelas considerações de Dieter Heitkamp, abrindo-lhe outras possibilidades. “Experimentar, pensar, comunicar pela fisicalidade e sensualidade perceptiva dos corpos”, diz a artista. Palavras que escreve no processo que antecede, ou que já é, a criação. Vai a bibliotecas, à Sociedade de Geografia, consulta livros antropológicos, literatura variada, poesia, relatos de viagens, ensaios históricos, escritos de arte, vê imagens, documenta-se. As referências que nos cita em conversa vão desde Agostinho da Silva, Fernando Pessoa, Benjamim, Gerard Castello-Lopes, Rimbaud. Jeff Wall, Rui Chafes, João Tabarra, Shirin Neshat, Lerleau-Ponty, entre outros…
No local, contacta intimamente com as comunidades, sentindo-lhes o pulso, partilhando aspectos da vida quotidiana, reajustando-se a outra cultura, a outras formas de sociabilidade, de expressão corporal, investindo sobre os códigos comportamentais. Um processo que lhe permite criar uma relação de confiança, em primeiro lugar, e um trabalho visual assente nessa mesma interacção. Cria uma estrutura cognitiva e relacional na qual baseia a produção de imagens que surgem ao mesmo tempo decorrentes de um momento específico, de improvisação, mas que não são alheias ao trabalho precedente. Ana Telhado procura novas Pompeias, que permitam equacionar a condição humana.
VIAGENS
“Ana Telhado demanda a geografia dos mitos. O roteiro das suas imagens é o da sua própria navegação como um reviver de segredos, de sonhos e de mitos que também nos constroem a História. E nos desafiam”, diz Nuno Rebocho sobre a obra da artista.
É com pouco mais que uma máquina fotográfica e um tripé que Ana Telhado parte para os seus destinos. Até agora, desenvolveu três projectos de forma consistente e outros mais experimentais: em Cabo Verde, Brasil e Guiné. Um triângulo de contactos, heranças, contaminações civilizacionais. Ao longo das séries realizadas, percebemos evoluções nos eu discurso: depuração e simplificação dos elementos encenados e captados pela objectiva, que implicam um complexo de leituras assentes no corpo humano e na sua relação coma paisagem, com objectos. Em Cabo Verde, Máximo de Paisagem Mínimo de Céu, 2006, é notória a influência formal do vídeo Passage, de Shirin Neshat, mas não decisiva. Os vocábulos são ordenados noutro contexto, sem as tensões da artista iraniana, mostrando paradoxos contextuais, próprios de um país como Cabo Verde. Na série realizada na Guiné, Cartografia, 2007, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, aparecem, pela primeira vez, estruturas arquitectónicas abandonadas, fragmentos da memória colonial, apropriadas pelos elementos naturais, lembrando os templos de Angkor Vat, no Cambodja, e garantindo um leitura próxima doa discursos do Sublime, do Romantismo. As fotografias são a preto e branco, explorando a relação entre as sombras, entre o ver e o não ver: valores simbólicos que a artista quer sublinhar. O “sentimento de si” é manifesto na forma como nos conta as experiências nestes países, nestas comunidades, nesta humanidade. Ana Telhado explora as memórias dos tempos perdidos.
In L+arte, Nº40, pg 54-59, Setembro 2007